Para chegarmos às verdadeiras fontes do motociclismo, é indispensável um passeio
pela Europa do século XVIII, época de nobres e aristocratas ávidos por
passatempos modernos, um ambiente favorável aos mais variados tipos de
invenções. Muitas delas eram pura vigarice, pedras de gelo do Pólo Norte,
árvores do dinheiro e outras enganações do gênero. A luz verde do transporte em
duas rodas acendeu primeiro na França, em 1790, quando o criativo (e riquíssimo)
Conde de Sivrac uniu duas rodas do mesmo tamanho por meio de uma pequena tábua
de madeira, onde o "condutor" sentava. O movimento era dado apoiando
alternadamente os pés no chão. O estranho veículo, batizado de celerífero, foi
sucesso imediato e logo virou mania, especialmente entre a "jovem guarda" da
ocasião, apesar das dificuldades para apontá-lo na direção desejada.
Réplica da Draisiene, o primeiro veículo bípede da história,
inspiração para Otto, Daimle Em 1817, outro nobre, o alemão Barão Drais aperfeiçoou o celerífero, instalando
um eixo vertical e um "garfo" na roda dianteira, o que permitia "guiar’ o
engenho. Ele rebatizou o veículo como Draisiene, e vendeu muitas unidades da sua
versão "franco-alemã" da bicicleta. Logo depois apareceu o biciclo, um primitivo
velocípede, outra tentativa de invenção do Barão Drais, com roda traseira de
diâmetro diferente, para que a rudimentar pedalada rendesse mais impulsão ao
veículo.
Cinqüenta anos mais tarde, o inglês Lawson inventa a transmissão por corrente e
o selim, ao passo que em 1885 é lançada a lendária Rover, de J. J. Starley, a
grande sensação entre os poderosos da Europa. Reis, rainhas e imperadores não
dispensavam um "rolé" de Rover, um brinquedo caro, mas de grande
potencial como meio de transporte, especialmente na descida.
Uma Roper a vapor de 1869. No século XIX, em plena era industrial, a engenharia européia tentava de tudo
para motorizar o biciclo (ou qualquer coisa que se movesse). Os motores já
existiam, mas eram estacionários, enormes e de funcionamento precário. Os
propulsores "funcionavam" tendo como "combustível" a pólvora, ar comprimido,
eletricidade (com baterias),acetileno, corda (tipo relógio), a gás ou a vapor.
Eram engenhocas gigantescas,impróprias para montagem em veículos, a tração
animal ainda era o meio de transporte do momento...
Como tudo começou
O alemão Gottlieb Daimler pode ser considerado o "pai do motociclismo". Ele
nasceu em Bad Cannstatt, cidade vizinha de Stuttgart, e desde pequeno mostrou
uma inclinação especial para os desafios da engenharia mecânica. Depois de se
formar, Daimler passou a trabalhar na Gasmotoren - Fabric Deutch, dirigida pelo
famoso engenheiro Nikolaus Otto, o inventor do motor de ciclo Otto. Daimler
tinha projetos diferentes em mente, o que desagradou o patrão, que o pôs no olho
da rua, mesmo pagando grande indenização.
Uma panorâmica da primeira oficina de motos (a
garagem de Gottlieb Daimler)
Essa verba permitiu que Daimler passasse a pensar exclusivamente em seus
inventos. Daimler convenceu seu ex-colega da Gasmotoren, Wilhelm Maybach a
trabalhar com ele em uma oficina improvisada no quintal da sua casa em Bad
Cannstatt. Já em princípios de 1855 surgia a primeira criação conjunta, um motor
de 264 centímetros cúbicos com meio cavalo de força a 500 rotações por minuto,
dimensões inéditas para o que se fazia até então. Esse motor, denominado
carrilhão, era movido a gás, mas Maybach desenvolveu um flutuador de carburador,
introduzindo a gasolina como combustível.
Mas na época ninguém usava gasolina e o risco de explosões era enorme, o que
levou a dupla de inventores a informar que o carrilhão era movido a gás e
petróleo, o que evidentemente não correspondia à realidade. Depois de alguns
estragos, e para a alegria da vizinhança, o motor passou a funcionar bem. O
próximo passo era adaptá-lo num veículo. Foi aí que se pensou no biciclo,
veículo que se adaptava muito bem à situação , além de ser de fabricação
simples, prática e barata; o dinheiro da indenização da Gasmotoren estava
chegando ao fim.
Um propulsor Dedion Bouton, o precursor de todos os motores de motocicletas
conhecidos.
Em 29 de agosto de 1885, Daimler obtém o registro número 36.423, no Departamento
Imperial de Patentes. Seu invento, batizado de Einspur, mais se parecia com um
biciclo para crianças, com o tradicional chassis de madeira rodas de apoio. Mas
o que mais chamava a atenção era o motor, que gerava 0,5 cavalos de força a 600
rotações por minuto. Em novembro daquele ano, o teste final do novo veículo, que
percorreu os três quilômetros que separam a cidade de Bad Cannstatt até
Untertürkheim (um bairro da cidade de Stuttgart) em meia hora, a uma velocidade
média de 6 km/h. Com o sucesso do teste, Daimler e Maybach deram por cumprida
sua missão de locomover um veículo mediante o uso de motor.
Ao que consta, Daimler nunca teve em mente um modelo específico de veículo.
Depois da aprovação do motociclo, seus pensamentos dedicaram-se ao
aproveitamento do motor para a locomoção aérea e marítima, acabando por fixar-se
no desenvolvimento de um veículo de quatro rodas, o embrião do automóvel. Ainda
hoje pode ser visto um exemplar réplica do primeiro motociclo, em exposição
permanente no Museu de Munich.
A Orient, a primeira motocicleta fabricada nos EUA.
O projeto do motociclo teve que ser, por assim dizer, "reinventado" em 1894,
pelos alemães Heinrich Hildebrand e Alois Wolfmuller. Foram eles que empregaram,
pela 1ª vez, a expressão "Motor Rad" ("Roda Motorizada"). No prospecto de
apresentação do primeiro motociclo fabricado em série, os inventores anunciavam
orgulhosos: "Em testes especiais, é possível elevar a velocidade a uns 60 km por
hora. Mas quem ousaria andar a tal velocidade?" E de fato, inicialmente foram
poucos os compradores do Motorrad, que com uma cilindrada de 1500cc, já
desenvolvia uma potência de 2 cavalos de força.
O novo veículo tinha alguns problemas crônicos, como a ignição, que
freqüentemente falhava em plena marcha. Só mais tarde é que a ignição por tubo
incandescente foi substituída pela magnética, melhorando substancialmente o
rendimento do veículo. Mas a essa altura a fábrica tinha que pagar uma série de
empréstimos anteriores, e os sócios acabaram fechando as portas, em 1897.
Mas naquele mesmo ano, os Werner, irmãos franceses que seguiram os passos dos
engenheiros alemães, decidiram tentar a sorte no nascente mercado das Motorrad.
Foram os Werner que criaram a expressão motocyclette, batizando o 1o motociclo
fabricado fora da Alemanha. O sucesso imediato despertou o interesse de outros
engenheiros e inventores, impulsionando o novo segmento. Com amplo apoio do
governo surge, ainda em 1897, a marca italiana Bianchi.
Os ingleses se apaixonam pelo motociclo e organizam a primeira corrida, batizada
de Motorcycle Scrambles, que aconteceu no dia 29 de novembro de 1897 em Surrey,
subúrbio de Londres. Era o nascimento do motociclismo de competição, em seus
anos mais românticos.
Um raríssimo flagrante: Fausto Macieira nos treinos livres para a Motorcycle
Scrambles. Infelizmente a imensa correia de seu protótipo rompeu e nem na
oficina de Gottlieb Daimler havia uma sobressalente...
No ano seguinte, os ingleses, todo poderosos de então, entram no novo mercado
para valer. O engenheiro James Norton lança sua própria marca, a Norton, que
ficaria famosa ao vencer a primeira prova de motovelocidade no lendário "Tourist
Trophy", circuito de estrada da Ilha de Man, na costa da Inglaterra.
A estes pioneiros do motociclismo os nossos entusiasmados agradecimentos, pela
criação de tão maravilhoso engenho. Os ingleses têm um ditado sobre a
motocicleta: "If there is anything better than a motorbike, God must have kept
for him in heaven" ( Se existe algo melhor do que a motocicleta, Deus guardou-o
para seu uso no céu).
Os primeiros tempos da motocicleta
Paralelamente aos primórdios da motocicleta, outras invenções que foram
aparecendo muito contribuíram para que ela (e também o automóvel) se
desenvolvesse. Assim, em 1887, um tal John Boyd Dunlop, veterinário escocês,
preocupado em melhorar as vibrações das rodas (de madeira) do triciclo do seu
filho, imaginou uma espécie de sobre roda, feita de um tubo de borracha oco, a
prendeu na roda com uma embalagem de tela e a encheu com uma bomba de ar. Era o
nascimento do pneu, tendo um veterinário como pai. Como diriam os lutadores de
vale tudo, esse John B. Dunlop era...o bicho! Dunlop patenteou o invento em
1888, voltado para a bicicleta, mas ao montar sua indústria verificou que um
inventor chamado R. W. Thompson já patenteara algo semelhante, nos idos de...
1846! Apesar das dificuldades, a fábrica Dunlop de Pneus seguiu em frente e
atualmente é um dos maiores fabricantes de pneus do mundo, ainda que sob o
controle japonês...
Na França, os irmãos Michelin também contribuíram para o rápido aperfeiçoamento
dos pneus. Corria o ano de 1889 e eles trabalhavam numa tecelagem , quando lá
apareceu um ciclista com ambos os pneus destruídos. Naquela época os pneus (Dunlop)
eram fixos, presos à roda por meio de tiras de pano que se rompiam facilmente
com as irregularidades do caminho. Para recosturá-las eram necessárias mais de 3
horas, fora o tempo de secagem. Era urgente a invenção de um sistema de reparo
que demorasse apenas uns poucos minutos.
O cartaz de um megaevento da época
Os irmãos Michelin estudaram com profundidade o problema, e 3 meses mais tarde
construíram um pneu que se fixava ao aro através de 17 cavilhas, bastavam cerca
de 15 minutos para ser desmontado e substituído. O novo pneu foi testado na
primeira grande prova de velocidade ciclística, em 1891. O vencedor percorreu
incríveis 1208 quilômetros, em 71horas e 30 minutos, com 8 horas de vantagem
sobre o segundo colocado, um dos melhores ciclistas da época. Para manter os
concorrentes acordados durante o inacreditavelmente longo percurso, os
treinadores soavam enormes campainhas junto aos seus ouvidos...
Animados, os irmãos Michelin organizaram uma corrida de Paris a Clermont Ferrand,
e para demonstrar a eficiência do seu produto, espalharam secretamente na
estrada uma grande quantidade de pregos. Foram ao todo 244 furos, reparados em
menos de 3 minutos, na média. Reparem que já naquela época existiam
organizadores de corridas movidos por outros interesses que não a
esportividade... mas os pneumáticos desmontáveis tinham provado de uma vez por
todas que haviam chegado para ficar.
Com os progressos da engenharia, fábricas de motos proliferavam por todos os
lugares. Antes da virada do século, as inglesas Ariel (1893), Royal Enfield
(1898) e Matchless (1899), disputavam espaço com a belga (?) Sarolea (1898) e as
francesas Clement (1898) e Peugeot (1899). Os alemães entram na briga com a NSU
(1901), e em 1903 surge a lendária Harley-Davidson, um ícone do motociclismo
norte-americano que influenciou muitas gerações de motociclistas.
Uma Puch dos anos 20
A maioria das marcas do início do século 20 era produzida de forma artesanal, e
muitas acabaram fechando as portas por conta das guerras e dos rigores da
florescente economia internacional. Uma das histórias mais interessantes é a da
inglesa Brough-Superior, conhecida como o Rolls-Royce das motos, classificação
que deu origem a um processo judicial da Rolls, que depois o retirou
espontaneamente, satisfeita com o alto nível da B. Superior e com a associação
de conceitos com seus automóveis. O famoso oficial inglês Lawrence da Arábia,
depois de uma vida super perigosa e atribulada, veio a falecer num acidente com
uma dessas, no quarteirão da sua mansão nos arredores de Londres. Aficcionado
por motos, ele possuía outras 6 motos da marca.
Em 22 de dezembro de 1904 surge a Federação Internacional de Motociclismo – FIM,
mas foi somente no pós guerra que começaram a ser disputados os campeonatos
mundiais de motociclismo, modalidade velocidade, categorias 125, 250, 350, 500 e
side car 500cc, no ano de 1949. No motocross, o torneio das nações aconteceu
pela primeira vez em 1947, e 10 anos mais tarde, o primeiro mundial de cross, na
categoria 500cc, vencido pelo sueco Bill Nilsson. O maior campeão da história do
motociclismo é o italiano Giacomo Agostini, com 15 títulos mundiais, 7 na
extinta categoria 350cc e 8 na 500cc.
A estranhíssima Millet, a tataravó da RCV 211 V
Em 52 anos de mundial de moto velocidade, os pilotos brasileiros conseguiram
vitórias, sendo a primeira em 1973, no GP da Espanha, em Jarama, com Adú Celso
Santos, na categoria 350 cc, com uma Yamaha. Já no motocross, os brasileiros
jamais venceram uma prova ou conquistaram posições de destaque.
Hoje, a motocicleta está em todos os lugares, com uma infinidade de modelos,
cores e tamanhos. O Brasil é o terceiro maior mercado motociclístico do planeta,
e poderia ser ainda mais forte se fabricantes, dirigentes e usuários de motos e
equipamentos fossem mais conscientes de seus papéis no mundo motociclístico.
As coisas acontecem de forma meio casuística por aqui, mas isso não ocorre só no
segmento das duas rodas. As motos surgiram no século 19, atravessaram o século
20 e seguem firmes século 21 a dentro, provando a cada dia que são muito mais
que um simples veículo, elas representam um jeito diferente de se viver. Agora
mesmo, nesse presente momento, elas cruzam as ruas do Brasil, as areias do
Ténéré, as planícies da China ou as neves da Finlândia, desempenhando as mais
diversas atividades. Isso não é virtual, é realidade. |